Em outubro do ano passado, a Joana Horta, fundadora do Ponto D’Orvalho, evento dedicado à arte, ecologia e comensalidade, desafiou-me a passar música, durante uma tarde, no Gotas D’Orvalho, programa que conduz mensalmente no novo estúdio da East Side Radio (ESR), no Duro de Matar.
A ideia seria levar temas que eu tivesse descoberto, que me tivessem acompanhado ou que me recordassem uma viagem que tinha feito às Dolomiti, uma cordilheira dos Alpes orientais, pouco tempo antes deste convite.
Uma viagem diferente de tudo o que se possa imaginar.
Rumei a este lugar, porque, desde 1995, é palco de I Suoni Delle Dolomiti, um festival de música em altas cotas, do qual já falei noutro texto deste substack.
Ao longo de três dias, percorri trilhos a mais de 2.500 metros de altitude, lado a lado com músicos profissionais que, de tempos a tempos, paravam de andar e davam breves concertos. Falou-se muito de silêncio: O da natureza e o da música.
Animada com a possibilidade de mostrar que o silêncio pode ser muito mais do que a mera ausência de rumor, aceitei o convite da Joana.
Ainda assim, e apesar dos oito anos passados entre aulas de violino, orquestra, coro e guitarra acústica, tenho a perfeita consciência de que a minha praia é, e sempre será, a palavra escrita.
Portanto, ao entrar nos estúdios da ESR, na tarde de 25 de novembro, carregava comigo, além de quatro músicas, muitas histórias: as que ouvi nas montanhas e as que oiço dentro de mim de cada vez que deixo o silêncio falar mais alto.
Escrevo-as de seguida, para todos os que tiverem curiosidade em conhecer uma pequena amostra dos muitos silêncios que compõem a voz do Mundo e perceber o que Mario Brunello, diretor artístico do festival, quer dizer quando afirma: “Quanto mais penso no silêncio, mais a música me fala”.
Projeto Unlocked, de Judith Weir

A viagem musical que propus na ESR teve início com No Justice e The Keys to The Prison, dois temas da compositora britânica Judith Weir, interpretados no cume Rosetta (2.743 metros de altitude) pelo violoncelista Mario Brunello que, sentado numa paisagem de carater quase lunar, entregou-os a um silêncio onde pareciam ecoar todos os sons do mundo.
Ambos fazem parte de Unlocked (1999), uma série de composições para violoncelo escritas por Weir, inspiradas nas canções recolhidas por John e Alan Lomax, na década de 1930, durante as viagens etnográficas que fizeram às prisões mais importantes do Texas, Louisiana, Mississippi, Tennessee e Kentucky, a fim de gravarem as canções cantadas pelos presos, sobretudo as canções folk afro-americanas.
Considerados dos musicólogos mais importantes do seu tempo e responsáveis pela documentação da música tradicional do seu país para a Biblioteca do Congresso, os dois homens [pai e filho], recolheram mais de 17 mil canções folk, devendo-se a eles o boom do folk e dos blues dos anos 1950 e 1960, do qual emergiriam nomes como Bob Dylan e os Rolling Stones.
No Justice (versão de Bryan Hayslett)
É um conjunto de variações que utiliza técnicas avançadas de execução, desenvolvidas a partir de uma simples canção de uma prisão da Geórgia, cujo título original era Oh, we don't get no justice in Atlanta.
The Keys to The Prison (versão de Bryan Hayslett)
O tema é baseado numa canção originalmente cantada por uma adolescente de 15 anos (Cajun), em francês. Na música, um menino que está preso com a mãe diz-lhe: “Mãe, tenho as chaves da prisão e vou fugir”, ao que esta responde: “Como? Se os guardas têm as chaves penduradas no pescoço?”.
Rápida e ágil, a melodia representa, segundo a compositora, “a fantasia do prisioneiro de que as portas da prisão, de repente, abrem-se e todos os guardas vão-se embora”.
Stratostaatti, de Mika Vainio
Um mês após ter regressado das Dolomiti, fui ao Porto e entrei na Matéria Prima, onde fui recebida pelo proprietário, o programador e editor de música Paulo Vinhas, e por aquela que, imediatamente, se transformou, para mim, numa das melhores representações sonoras das Dolomiti e do silêncio carregado de reverberações esmagadoras, que havia povoado os meus dias nem um mês antes.
Statostaatti (Olento - Mika Vainio)
Era Statostaatti, do álbum Olento de Mika Vainio, experimentador sonoro dos Pan Sonic, projeto através do qual o artista, que morreu em 2017, deixou a sua marca na música electrónica mais exploratória.
Durante a caminhada nas Dolomiti, o diretor artístico do festival, Mario Brunello, comentou que tinha saudades do tempo em que ouvir música era uma atividade por si só. Quando as pessoas se sentavam para, ao longo de uma hora, ouvirem um album de uma ponta à outra.
Sem nunca ter conhecido Brunello, Vainio partilhava da mesma opinião. O artista tinha o hábito de convidar amigos para sua casa e fazê-los ouvir gravações musicais em silêncio e com total concentração.
Em novembro de 2023, o Museu de Serralves apresentou Mika Vainio Listening Room, uma sala de escuta que tinha o objetivo de voltar à audição enquanto atividade focada e priorizada, onde não se faz outra coisa senão ouvir.
Mika Vainio Listening Room foi concebida e programada por Rikke Lundgreen e Tommi Grönlund e apresentada, entre outros lugares, no Sonar Festival/ Fundació Antoni Tàpies.
One Too Many Mornings, de Bob Dylan

Para fechar o programa, escolhi One Too Many Mornings, uma das canções de Bob Dylan tocadas, durante a caminhada nas montanhas, por Pietro Brunello, na guitarra e voz, e Alessandro “Asso” Stefana, no banjo.
One too many mornings (The Times They Are A-Changin' - Bob Dylan)
Mais do que descrever o fim de uma relação, as palavras de Dylan exprimem algo muito mais triste e doloroso: o lento gravitar em direções opostas de duas pessoas que se desapaixonaram e se foram afastando até se tornarem estranhos.
Escrita quando Dylan tinha apenas 22 anos, a canção reflete sobre a inevitabilidade do fim para duas pessoas que estão “one too many mornings and a thousand miles behind” de onde deveriam estar para que o seu amor conseguisse perdurar.
É necessário um grande silêncio interior para, aos 22 anos, não ceder à tentação de versar no poema qualquer tipo de raiva ou amargura, e encontrar as palavras certas para descrever o amor depois do amor.
O amor à memória do que foi, ainda que se saiba que não poderá voltar a ser mais.